Uma cobra de cimento serpenteando lembranças terrosas e floridas
Buriti Alegre fica ao sul do Estado de Goiás, como várias cidades pequenas do Centro-oeste brasileiro, ela se confunde à paisagem natural do cerrado, ora parece invadir a vegetação local, ora é invadida por árvores de raízes profundas, com seus troncos tortuosos e galhos secos retorcidos. Nessa cidade, onde nasci e cresci, os tons são terrosos, no entanto, nos meses de abril a setembro a gradação e variedade de marrons abrem espaço para que os amarelos, rosas, roxos e brancos sejam protagonistas. Há uma explosão de floradas vindas dos ipês e jacarandás em meio à vegetação rasteira e aparentemente seca, mesmo antes do início da primavera em setembro.
Ali, nos meus tempos de infância, as crianças brincavam nas ruas empoeiradas, subindo em árvores, guerreando com mamonas, fazendo colares de flores, carrinhos com rodas de limão, animais com corpo de jiló e chuchu, com pernas de graveto e bonecas de espigas de milho que faziam companhia aos brinquedos, já, industrializados.
Os quintais viravam um universo inteiro, era o lugar da imaginação, nele as crianças eram rainhas e reis de pés no chão, bichos fabulosos e árvores encantadas.
Lembro-me, vagamente, de brincar na rua da minha bisavó e me encantar com uma cobra multicor inusitada. Modelada em cimento, ela contornava uma casa da vizinhança e serpenteava minha imaginação. Passei boa parte da infância visitando-a toda vez que ia ver minha bisavó, até que fui crescendo, meus avós e tios desaparecendo e aquela cobra foi se desbotando e se corroendo até sumir.
A paisagem da região se modificou drasticamente com o tempo, os lugares dos arredores da cidade foram plantados de progresso do agronegócio (do agrotóxico).
O comportamento das pessoas também se modificou mediante novas inserções tecnológicas.
Hoje vejo que trazer à tona essas lembranças não é apenas uma questão de nostalgia, mas uma questão de sobrevivência mediante as investidas mortais contra o nosso bioma.
Na produção para a exposição “Com os pés plantados nas nuvens”, retomei às lembranças da infância, ao meu convívio com a zona rural do interior de Goiás e à paleta que me remete há esse tempo.
Trouxe para a pesquisa poética representações de cobras da região, principalmente das cascavéis e da vegetação. No percurso de juntar as lembranças as vivências atuais, fiz anotações e desenhei em cadernos, onde colei fragmentos como: folhas vegetais em decomposição, ecdises de cascavel, recortes de revistas, impressões de fotografias e revelações de cianotipias. Paralelamente, fiz impressões fotográficas com técnica de antotipia (fotografia alternativa a partir de emulsões feitas com pigmentos naturais) e desenhos com técnica de aquarela sobre papel, sempre tentando misturar à paisagem às cobras, casas e árvores, plantando essas representações a uma paleta de terrosos, amarelos e verdes naturais.
Atualmente, moro na região periférica da cidade de Goiânia, onde pude encontrar alguns objetos naturais que me serviram de pigmentos para realização de antotipias e aquarelas.
Além de buscas na memória, de referências do passado, o processo criativo se deu com flores de árvores nativas da região do Estado de Goiás, encontradas nas proximidades da minha casa. Durante alguns meses busquei identificar as árvores da região; observar o período de florada das árvores; realizar esboços e anotações em cadernos sobre os ciclos das árvores; fotografar; coletar diariamente flores caídas de ipês e jacarandás; extrair pigmentos de flores das árvores; registrar paleta; observar a anatomia das árvores e das flores e, finalmente, realizar antotipias com representações botânicas usando as cores naturais. As espécies de árvores que forneceram flores para os pigmentos foram: Handroanthus ochraceus (Ipê-amarelo); Tabebuia roseoalba (Ipê-branco); Handroanthus impetiginosus (Ipê-roxo) e Jacaranda cuspidifolia (jacaranda). Outros vegetais complementam a paleta, como açafrão (cor amarela) e folhas de boldo (cor verde).
Esse movimento de experimentar e catalogar cores extraídas de vegetais possibilitou-me descobertas, ou lembranças, tonais e olfativas que resultaram em desenhos com cheiros de terra e flores.
Com experimentações da paleta de cores e cheiros naturais, segui com o desenvolvimento de uma série de desenhos sobre papel 100% celulose com gramatura 300 nos tamanhos A3 (29,7cm x 42cm) A4 (21cm x 29,7cm) acerca das cobras, da paisagem, da vegetação local, das árvores e flores.
Além da série realizada com estes tamanhos desenvolvi duas aquarelas sobre papel 100% algodão (75cm x 110cm), e dois livros de artista (livros paisagem) no formato de sanfona (10cm x 15cm – fechado e 10cm x 150cm – frente e verso – aberto) neles, representei a cidade e a casa onde morei na infância e seus arredores. Lá as cobras aparecem contornando medos, em meio à paisagem terrosa e iluminada dos meses secos do meu Cerrado do passado.
Formada em Artes Visuais (Licenciatura e Bacharelado) pela Universidade Federal de Goiás, com mestrado em Patrimônio Cultural (PUC/Goiás - 2005) e Arte e Cultura Visual (UFG – 2008) e doutorado em Arte e Cultura Visual (UFG - 2018). Desenvolve pesquisa nas áreas de gravura e desenho. Trabalhou como professora da PUC/Goiás, nos cursos de Design, Arquitetura e Biologia. Atualmente é professora da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás e desenvolve pesquisas e trabalhos em arte contemporânea, gravura, livro de artista, livro ilustrado e fanzines. É autora e ilustradora de livros para crianças. Participou de diversas exposições com objetos, pinturas, colagens, desenhos e gravuras.Link para o currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5746650604229392