Com os pés plantados nas nuvens

Paulo Henrique Duarte-Feitoza

AS NUVENS QUE PASSAM

Os coloristas são poetas épicos.
Charles Baudelaire

SOL, LUZ, COR1

Ao longo dos séculos, a luz e a cor foram realidades fundamentais que possibilitaram pensar a obra de arte, em especial a pintura. Não em vão, Baudelaire afirmou que «na cor se encontram a harmonia, a melodia e o contraponto». No Brasil, a luz e as cores tropicais representaram um autêntico desafio aos pintores europeus que aqui chegaram. Para o pintor Nicolas-Antoine Taunay, como bem explicou Lilia Schwarcz, o Brasil era difícil de apreender e pintar devido à sua luz demasiado brilhante o que teria motivado o artista a afirmar «estar no país do Sol»2. Para Édouard Manet, precursor dos impressionistas que esteve no Brasil entre 1848 e 1849 quando tinha apenas 17 anos, a luz dos trópicos foi reveladora3. Sobre esta viagem, afirma Carlos Zilio que «Manet teve seu olhar impregnado como se essa outra luz houvesse queimado na sua retina qualquer possibilidade de conciliação com o mundo clássico»4. Se a luz e o sol do Brasil possibilitaram a planaridade da pintura de Manet não podemos afirmar; entretanto, segundo Michel Foucault, a partir do uso da iluminação sem precedentes na pintura europeia, Manet «fez agir na representação os elementos materiais fundamentais da tela, ele estava inventando, se quiserem, o quadro-objeto, a pintura-objeto»5. Por ora, o que gostaríamos de afirmar é que a luz e as cores desta parte do mundo parecem ser, ora um impedimento, ora uma oportunidade para a arte que, num balanço pendular e continuo, nos faz refletir. 

ÂMBAR(ES)

O Centro-Oeste é uma região de contrastes profundamente antagônicos. É possível percebê-lo a começar por seu clima extremamente radical e oposto com duas estações marcadas; uma chuvosa e outra seca, que apresentam luzes e cores ora opostas, ora complementares. Tudo se apresenta de forma profundamente intensa; na época da seca, o sol se mostra de forma tão radiante e intensa que nos obriga a fechar ligeiramente os olhos ao tentarmos mirar a paisagem. As chuvas, com seus raios e trovões, às vezes breves, são tão estrondosas que inquietam qualquer alma tranquila. Nesta região, há algo, todavia, mais perturbador, algo que até para aquele sujeito habituado às idas e vindas nestas terras jamais passaria despercebido: o céu. A horizontalidade deste planalto junto ao céu imenso, azul e brilhante, pesa sobre nós de forma singular. Se em outras regiões é facilmente possível circunscrever e perceber seus limites territoriais, seja graças às montanhas, rios ou matagais, aqui as lonjuras parecem se prolongar ao infinito, provocando uma sensação de tempo e espaço singulares. Neste céu infinito, a lua e o sol, em determinados períodos do ano, se apresentam, também, de forma tão gigantesca que assustam, ao mesmo tempo que fascinam. Não à toa, há um ditado que diz que «o mar de Goiás é o céu».

Por outro lado, o âmbar, para além do espaço abstrato, é um material residual das seivas das árvores, com o qual se fazem tintas para pintura; proteção contra o ácido, na gravura e, também; produtos medicinais usados na cultura popular e quilombola. Assim, a ideia Âmbar também está ao alcance da escala das mãos, próxima ao corpo, fazendo esse território híbrido entre o Cerrado, a Mata Atlântica e a floresta Amazônica – que é Goiânia, com seu barro vermelho de solo magmático vulcânico – ganhar dimensões em que o local dialoga com o global sem perder suas idiossincrasias.

Ao pensar a luz que se desenha e irradia nesta região, há um momento específico do dia quando ela se mostra de fato singular. No fim da tarde, entre o término do dia e o crepúsculo da noite, é possível ver o imenso sol se aproximando do horizonte e, exatamente neste momento, efêmero, fugidio e lampejante, o azul brilhante do céu infinito dá passo a essa cor praticamente única, âmbar, que logo se mistura a azuis, ocres e alaranjados mais escuros até apresentar-se o breu. Durante poucos minutos, o espetáculo é tal que a cor invade nossas retinas provocando prazer e assombro de forma avassaladora. 

A exposição Com os pés plantados nas nuvens apresenta obras que são resultado de um processo criativo, de pouco mais de um ano, que buscou pensar, discutir e criar entorno à luz e à cor âmbar. Situados no Centro-Oeste, e de olho nas peculiaridades do céu e da luz neste entorno geográfico, os artistas integrantes do grupo Âmbar, através de suas heterogêneas práticas artísticas, criaram pensando nesta cor que se apresenta de forma tão efêmera, porém tão intensa em nossos céus. Adriana Mendonça, nascida em Buriti Alegre, cidade situada ao sul do Estado de Goiás, mergulha nos tons terrosos de sua memória afetiva. Lembrando das brincadeiras infantis, qual homo ludens6, a artista acessa, através da memória, locus específicos da imaginação, ativando o processo criativo a partir de flores de árvores nativas da região, ativando experiências oculares, mas também olfativas, sentido tão negado pelo Império da visão ocidental. Deambulando pelas proximidades de sua casa, de maneira serpentina, Mendonça observa, esboça, anota, fotografa, registra paletas, coleta flores e extrai pigmentos que lhe permitem criar obras como o Livro-paisagem que nos apresenta. Esta peça nos mostra que os lampejos âmbares, como o bater de asas de uma borboleta, são labirínticos e musicais. 

«Amarelo alaranjado, laranja amarelado, amarelo acobreado, castanho», escreve a artista Eliane Chaud em sua poesia Âmbar. Chaud opera de maneira múltipla, anotando, escrevendo, rimando, coletando e cortando fios. Em sua obra Guardados de cor, faz uso dez pequenas placas de Petri nas quais sobrepõe linhas de bordar em diferentes tonalidades de cor âmbar. O resultado é singular, e permite observar de maneira aleatória e sem ordem definida as cores delicadamente guardadas. As linhas de bordar, material historicamente vinculado à prática doméstica feminina, com suas tonalidades cálidas, contrasta com a frieza laboratorial das placas de Petri. A coleta, seleção e o guardado das cores vinculadas à paisagem de seu cotidiano, que também pode ser nosso, é realizada de forma delicada e afetiva, mas também cirúrgica e precisa como nos fazem pensar os recipientes que as contêm. Chaud nos convida, muito sutilmente, a cultivar, observar e examinar as tonalidades que muitas vezes passam despercebidas em nossa rotina desenfreadamente moderna. 

O cotidiano é também um dos assuntos de reflexão de Glayson Arcanjo, cuja «casa» é um lugar e uma ideia que atravessam sua vida e parte de seus processos criativos. Arcanjo se recolhe em seu quintal e se integra à terra, construindo canteiros, plantando hortaliças e flores. Em certas ocasiões, é possível intuir ou pensar em uma volta sutil ao primigênio, ao originário primeiro. Neste tempo-espaço, o artista se debruça sobre as vistas do quintal coletando, em diversas linguagens artísticas, as tonalidades de cor âmbar. Com a chegada dos meses invernais, agosto e setembro, tal qual um demiurgo do Cerrado, Arcanjo observa o que ele mesmo denomina de «ambiência âmbar», isto é, essa lenta porém imparável transformação colorista da vegetação do quintal que, aos poucos, revela tonalidades terrosas, amarelas, laranjas, ocres e marrons. A partir da coleta e observação direta das árvores, ele elabora a série de desenhos Árvores-raízes em que, como bem afirma, os tons ocres, marrons e alaranjados nos aproximam das cores do pôr-do-sol e do fogo, esse último elemento inconfundível e frequentemente vinculado às queimadas no período seco da região. O fogo é origem, mas também fim. Em outras ocasiões, na obra de Arcanjo, casa-quintal-corpo é um ente único e interligado. Ao caminhar no quintal, assistimos, na vídeo-performance Sem título, o artista se integrando perfeitamente ao entorno e, às vezes, as cores terrosas da vegetação se misturam com esse corpo que deriva rumo a um destino desconhecido. Algo similar acontece na imagem Sem título em que o artista, após coletar uma enorme folha seca, se fotografa segurando-a; mais uma vez, as tonalidades terrosas da vegetação e do corpo se misturam reforçando a conexão homem e natureza, num baile onírico, poético, e justamente por isso, profundamente político.

A natureza local é também assunto de reflexão proposto por Maria Tereza Gomes. A artista anota, escreve, esboça, coleta sementes e analisa cheiros e tonalidades. O ponto nevrálgico de seu processo criativo se dá através da observação das seivas das árvores locais, tais como o jatobá ou o angico, que exsudam como autodefesa uma resina de cor âmbar com propriedades medicinais. Gomes trabalha as qualidades materiais da resina, seu brilho, transparência e maleabilidade. Após experiências criativas vinculadas ao acaso, a resina se transforma em verniz e logo em finas camadas de resina craquelada que possibilitam à artista apresentar formas matéricas de folhas sobre tecido. Estas obras – assim como os desenhos de plantas usando os próprios extratos glicólicos – podem ser vistas como exercícios quase autofágicos.

O corpo, a memória e a infância também aparecem na obra de Odinaldo Costa. Obrigado pela pandemia a retornar à cidade, e também à rua em que morou e viveu durante a infância e a juventude, o artista se propõe (re)visitar esses locus e esse corpo com o intuito de desencadear processos criativos. Assim, a praia de Tambaú se transforma num palco cênico intimista no qual se perde, passeia e deambula à procura de objetos e fragmentos de memória. É possível imaginá-lo como um catador que, frente a cada objeto perdido, com suas mãos, (re)ativa memórias afetivas que são individuais, mas também coletivas. As séries Nem por um segundo pensei que estaria no mar sozinho, Esquecidos e Topografia de mim são imagens independentes apresentadas em sequência que formam um mosaico. Há ali uma brincadeira infantil, ao posicionar vidros frente à lente que acaba por revelar essa imagem âmbar, sépia, vinculando essas imagens a um passado que se faz presente. Ainda sobre as formas, a apresentação dessas imagens lembra mosaicos bizantinos; cada pequena peça, imagem, tem função própria, mas juntas narram uma história. A falta de uma imagem e, portanto, de uma peça, não impossibilita a leitura em conjunto, mas interrompe a narrativa, convidando o espectador a completar a sequência, talvez com uma história própria.

Outro catador de imagens é Rubens Pileggi. Observador com olhar afiado, Pileggi se integra literalmente à paisagem. Fascinado pela luz que o pôr-do-sol nos oferece na região, o artista vem capturando esses instantes com sua câmera, desde 2012. A coleção de imagens é diversa, mas as imagens têm algo em comum, procuram imortalizar o instante fugaz, o lampejo fugidio que se desenha nos céus entre o pôr-do-sol e o breu, âmbar. Não só fotografa a natureza, como também o bairro e suas luzes; aqui, é possível perceber como a luz anterior à escuridão natural e as luzes artificiais da noite têm uma tonalidade âmbar que se aproximam. Na vídeo-performance Âmbar com paisagem e cigarras o artista projeta sobre seu próprio corpo as imagens que vem capturando ao longo dos anos. À medida em que o vídeo avança, é possível perceber uma conjunção entre o corpo e as imagens. O efêmero e o fugidio do âmbar se manifestam no lampejo das imagens, nas lâmpadas do bairro, mas também na própria luz do projetor que integra esta dança fugaz em que se transforma o vídeo. O canto das cigarras é perturbador. Na cultura popular o som avisa aos humanos a aproximação das chuvas após os meses secos e quentes. Um grito de desespero? Talvez! Mas esse nos lembra que tudo é efêmero, assim como os lampejos âmbares, e que a chuva chegará, estrondosa como sempre, iniciando um novo ciclo natural renovando eternamente a paisagem no Brasil Central.

Os trabalhos aqui apresentados, em toda sua heterogeneidade, procuram reavaliar, pensar e criar a partir desta luz, cor e materialidade tão características, mergulhando, cada um à sua maneira, nas profundezas da criação.

ÍCARO,
DO SOL ÀS ILHAS DO ÂMBAR

Segundo recolhe Pierre Grimal7, Ícaro era filho de Dédalo. Após Dédalo ajudar Teseu a escapar do Labirinto, o rei Minos ali os encerrou. Contudo, o brilhante engenheiro fabricou asas para si e seu filho fixando-as aos ombros com cera. A advertência do pai, foi a de que Ícaro não deveria voar muito alto, nem rápido, porém a rebeldia e orgulho fizeram-no se elevar próximo ao astro rei, provocando que a cera se derretesse e Ícaro se precipitasse ao mar. Num cabo do mar Egeu, encontra-se a tumba de Ícaro. Explica-se, também, que nas ilhas do Âmbar, Dédalo levantou duas colunas/estátuas; uma em honra ao seu filho e outra a si próprio. Outro ponto que nos interessa a respeito deste mito é o relato recolhido no livro De mirabilibus auscultationibus (Das maravilhosas coisas ouvidas), atribuído a Pseudo-Aristóteles, onde é possível ler que, «Acima das ilhas do âmbar que estão no ângulo formado pelo Adriático, dizem que existem duas estátuas: uma de estanho e outra de bronze, que não têm o aspecto de uma técnica antiga. São obra de Dédalo e datam da época em que, fugindo de Minos e vindo de Creta e da Sicília, Dédalo chegou a esta região»8.

O presente relato nos interessa enquanto menção às conexões entre o Sol e um lugar imaginário no qual se extraia o âmbar. A impossibilidade de aproximarmo-nos do Sol nos leva diretamente ao âmbar. Nestes lados do mundo, imbuídos de certo realismo mágico, não é difícil pensar nosso sertão como um lugar real-mitológico onde, todos os dias, entre o fim da tarde e o crepúsculo da noite, num momento fugaz que escapa rapidamente, a luz âmbar, um Sol inverso, inunda este imenso céu prolongando ainda mais o infinito altiplano. 

Com os pés plantados nas nuvens é uma meditação entorno à luz e à cor âmbar. Como vimos, é também sobre esse instante efêmero que nos escapa às mãos. Termino esse texto olhando o imenso céu através de minha janela e me vêm à mente um verso de Charles Baudelaire: «Amo as nuvens… as nuvens que passam… lá, lá, adiante… as maravilhosas nuvens!»9.

Paulo Henrique
Duarte-Feitoza

1 O presente parágrafo está baseado nas discussões realizadas pelo grupo âmbar recolhidas por Rubens Pileggi no texto Sobre o início das nossas conversas sobre o âmbar (2021).
2
SCHARCZ, Lilia Moritz. O sol do Brasil. Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
3
CAVALCANTI, Jardel Dias. “Manet no Rio de Janeiro” in Digestivo Cultural. Londrina, 13/1/2003. Disponível em: https://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=888&titulo=Manet_no_Rio_de_Janeiro
4 ZILIO, Carlos. “Justamente pelo contrário” in Revista Tempo e Presença, Rio de Janeiro, v. 9, fev. 1987, p. 118. Disponível em: https://www.carloszilio.com/textos/1987-presenca-justamente-pelo-contrario.pdf
5 SCACHETTI, R. E. (2012). A pintura de Manet. Visualidades, 9(1). Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/VISUAL/article/view/18381
HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2010.
7
GRIMAL, Pierre. Diccionario de mitología griega y romana. Barcelona: Paidós, 1981.
8
SCHREIBER, Hermann e Georg. Ciudades malditas de la Antigüedad. Un misterio sepultado por la Historia. Barcelona: Reditar Libros, 2006, p. 74. (tradução nossa)
9
BAUDELAIRE, Charles. ‘O estrangeiro’ in O Spleen de Paris. Pequenos poemas em prosa. São Paulo: Hedra, 2007, p. 37.

Paulo Henrique Duarte-Feitoza